DA PROLIFERAÇÃO DAS DISTOPIAS
“As distopias proliferam; e um certo pânico perplexo (pejorativamente incriminado como “catastrofismo”), quando não um entusiasmo algo macabro (recentemente popularizado sob o nome de “aceleracionismo”), parecem pairar sobre o espírito do tempo. O famoso “no future” do movimento punk se vê subitamente revitalizado…” -D. DANOWSKI & E. VIVEIROS DE CASTRO (2014) [1]
O futuro é algo que não se pode possuir. Ninguém consegue comprar um futuro sem fim. Eis o destino inelutável dos mortais: entre o berçário e a tumba, cada um de nós, animais humanos e não-humanos, tem um tempo de vida limitado pelas infinitudes do antes-do-nascimento e do depois-da-morte.
Porém e hoje mais do que nunca, para mencionar uma famosa constatação Paul Valéryana, “também as civilizações são mortais”. Em nossos tempos figuras como Jared Diamond escreveram em minúcias sobre as causas da decadência de certas sociedades, impérios, civilizações. Em nosso futuro, portanto, existe a possibilidade (cada vez mais palpável) do colapso.
Que mundos vão acabar, e que mundos surgirão no lugar, são algumas das questões que motivam a criação de obras-de-arte destinadas a se debruçar sobre estes mistérios do tempo e suas transformações. E por “obras-de-arte” penso em novelas sci-fi, filmes-catástrofe, mitos apocalípticos de várias seitas religiosas, quadros sinistros (feito aquelas pinturas-guerra de Brueghel), e por aí vai.
Nos últimos anos, a profusão de obras distópicas foi tamanha que talvez possa se falar em epidemia. Só no cinema, tivemos Melancolia (Lars Von Trier), Ensaio Sobre a Cegueira (Fernando Meirelles), Snowpiercer – Expresso do Amanhã, Elysium, The Road (James Hillcoat),O Dia Depois De Amanhã (Roland Emmerich), The Hunger Games, Disruption, The Age of Stupid…
O jornalismo televisivo não cessa de estar repleto de notícias sobre furacões (como o Katrina ou o Sandy), tsunamis devastadores (como aquele que arrasou o Japão e trouxe destruição imensa na usina nuclear de Fukushima, com o vazamento para a atmosfera e para os mares de quantias imensas de material radioativo e cancerígeno), secas e inundações (desde a falta d’água severa que afeta estados como São Paulo e Califórnia quanto a subida dos níveis das águas que afoga comunidades litorâneas). Há quem creia que é punição dos deuses por nossos excessos Prometéicos, mas os que descreem em deuses não deixam talvez de crer que há decerto culpa humana na determinação material destes eventos.
Climatologistas, ambientalistas, ecologistas, antropólogos, às vezes pretendem, em seus discursos e alertas, conhecer o futuro desde hoje, uma capacidade de “vidência” que os mais céticos podem considerar suspeita. Como é que eles sabem tanto assim sobre o nosso futuro, por que deveríamos crer em seus pesadelos? Bem, aqueles pejorativamente incriminados como “catastrofistas” dizem possuir vasto repertório de provas empíricas daquilo que estão afirmando.
As centenas e centenas de cientistas congregados no IPCC (O Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas), já publicam há anos seus relatórios onde comunicam o consenso quase completo da comunidade científica global sobre o aquecimento das temperaturas planetárias causadas pela humanidade, em especial após a industrialização iniciada a partir do séc. 16). Os alertas sobre um potencial futuro repleto de catastróficas destruições e inimagináveis barbáries sociais, porém, não “ressoam” tanto assim nos centros-de-poder onde as alta finanças, os especuladores das bolsas-de-valores, os mega-banqueiros concentradores de capital, preferem prosseguir no modo lucrativo de uma mentalidade “presentista”, isto é, irresponsável, esquecida de propósito do Tempo, da continuidade da Vida através das gerações. Como disse Bruno Latour em Jamais Fomos Modernos,
“os modernos têm a particularidade de compreender o tempo que passa como se ele realmente abolisse o passado antes dele. Pensam todos que são Átila, atrás do qual a grama não crescia mais. Não se sentem distantes da Idade Média por alguns séculos, mas separados dela por revoluções copernicanas, cortes epistemológicos, rupturas epistêmicas que são tão radicais que não sobrou nada mais deste passado dentro deles – que nada mais deste passado deve sobreviver neles.” LATOUR, B. [2]
Há portanto uma certa “fobia do passado”, no ar dos tempos, que acarreta também uma “cegueira do futuro”; os modernos não querem de modo algum retornar a um estágio no passado, antes da invenção da penicilina e dos antibióticos, dos carros e dos aviões, dos arranha-céus e dos computadores globalmente conectados; mas os modernos tampouco parecem à vontade com a ideia de pensar nas gerações futuras, todos aqueles ainda por nascer, preferindo não abordar com a mente fatias de tempo mais amplas do que a mini-fatia dentro da qual desenrola-se uma vida.
O fim do mundo manifesta-se em múltiplas formas, já que são muitos os diferentes “mundos” (o do poeta místico, feito William Blake, Arthur Rimbaud e Clarice Lispector sendo bem diferente do mundo descrito por engravatados que andam em blindados e especulam em Wall Street), e também são muitas as diferentes rotas para os vários finais.
Em certas narrativas, o mundo pode acabar como uma terra devastada e sem vida: Carl Sagan, em Cosmos, pedia-nos para olhar para os planetas vizinhos à Terra para que nos lembrássemos do que pode se passar com um corpo celeste que não possui as condições climáticas e ecosistêmicas de que aqui gozamos e que foram a condição sine qua non para o surgimento e evolução da vida. A vida em evolução que é este processo-em-curso e que a humanidade agora ameaça, com o prosseguimento de seu extrativismo frenético de recursos naturais não-renováveis.
Pensávamos que o mundo era indiferente a nós, e eis que descobrimos que ele responde a nossos atos e que pagaremos o preço por nossos excessos. O que Gaia pede de nós é sabedoria, caso contrário ela chaqualha-se, como uma cão faz com suas pulgas, para expulsar o hospedeiro parasita (lembrando Raul Seixas). Isto, é claro, é mais poesia do que ciência. Mas o que impede que o cientista e o poeta concordem, como ocorre, aqui e ali, em Ponto de Mutação, de Fritjof Capra? Talvez ambos concordem que hoje estamos sob ameaça de caotizar e des-balancear o clima do planeta, através dos impactos de nossas atividades sobre a atmosfera, os recursos hídricos, as entranhas da terra.
No Antropoceno, o homo sapiens mais merece a alcunha de homo destructor, aquele que, como Átila, passa pelo presente de modo a não deixar grama crescendo atrás de seus pés: talvez estejamos arrasando nossa própria capacidade de ter no futuro um sistema de produção de alimentos e de renovação de um ar respirável e um clima vivível – a “normalidade” do business as usual mostra-se cada vez mais fortemente como nada mais que uma prática progressivamente suicidária.
Gaia é o nome da entidade que o ser humano pretende desprezar, poluir, desmatar, esquentar, encher de plástico, sobre ela vomitando dióxido de carbono, sem saber que ela, Gaia, protagoniza hoje uma imensa “intrusão na História”, como diz Isabelle Stengers. [3] A obra de Viveiros e Danowski é essencial para colocar algumas das mais urgentes questões que precisamos coletivamente nos colocar diante dos rumos suicidários da civilização capitalista extrativista e desenvolvimentista e consumista que hoje acelera rumo à brick wall dos limites planetários:
“Se Gaia também é um mundo vivo e plural, (…) não se trata porém de um mundo harmonioso e equilibrado, e muito menos dependente, para sua persistência, da exclusão da humanidade, como se esta fosse um invasor extraterrestre chegado para estragar um idílio pastoril. (…) Gaia é antes de mais nada feita de história, ela é história materializada, uma sequência contingente e tumultuária de eventos… Na concepção de Bruno Latour, é menos a história humana que vem se fundir inesperadamente com a geohistória, mas sim a Terra-Gaia que se torna historicizada, narrativizada como história humana – compartilhando com esta, aliás, e a ressalva é essencial, a ausência de qualquer intervenção de uma Providência. Resta saber quem é o demos de Gaia, o povo que se sente reunido e convocado por esta entidade, e quem é seu inimigo.” [4]
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
[1] D. DANOWSKI & E. VIVEIROS DE CASTRO (2014)
[2] LATOUR, Bruno. Jamais Fomos Modernos – Ensaio de Antropologia Simétrica. Trad. Carlos Irineu da Costa. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1994, pgs. 67-68.
[3] STENGERS, Isabelle. No Tempo Das Catástrofes – Como Resistir à Barbárie Que Vem.
[4] EDUARDO VIVEIROS DE CASTRO & DÉBORAH DANOWSKI, Há Mundo Por Vir? Ensaio Sobre Os Medos E Os Fins (2014, Editora Cultura e Barbárie, p. 120. Compre aqui.)
Publicado em: 27/07/19
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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